Primeiro Capítulo

Memorial das Flores

  

Brasil, setembro de 2014- 1ª parte

    Flora olha para a rachadura na parede. É um buraco comprido e estreito, um pouco mais aberto na parte de baixo, quase no chão. A umidade rodeia o que era só uma fresta escura e aquilo tudo parece algo impregnado de vida: uma camada de bolor tão escura quanto o espaço sem nada, apegada na tinta que já não tem uma cor definida, um borrão em cima de outro borrão e uma linha divisória. Seus olhos estão cansados não só da viagem, estão cansados de se deixar atrair por detalhes que o tempo imprime nas coisas, detalhes que não deveriam chamar muito a atenção, que são apenas coisas que alguém pode olhar enquanto está atento a outras coisas. Ela deixou a mala na calçada e sentou-se naquele degrau que parecia um lugar seguro. Precisava de uma pausa para tomar fôlego. Ficar quieta por um momento. Pensar no próximo passo. Mas seus olhos cansados não a deixavam pensar. Rebelaram-se com o fato de continuarem abertos e escolheram uma maldita rachadura na parede para se fixarem. Ela sentiu que talvez eles tivessem razão. Era melhor abandonar-se, descansar, afinal o cansaço, quando chega, toma conta de tudo. Ninguém estava ali para puxá-la para fora do seu letargo. Este é um dos riscos de viajar sozinha: de repente frestas e borrões tornam-se a materialização daquilo que se sente e é preciso olhar para eles, olhar, enquanto o corpo respira. Depois de algum tempo eles continuam a ser simplesmente aquilo que se destinaram a ser desde o início: nenhum símbolo revelador, nenhuma porta secreta, nenhuma resposta, nenhum mapa. Só um alívio por encontrar fora uma imagem quase perfeita daquilo que se tem dentro. É só isso. O hotel ficava logo ali, dava para ver o letreiro.
    Parecia não ter mudado em nada depois de tantos anos. Pelo menos na parte externa. Dentro, também parecia ter parado no tempo, mas não importava. Esta era a primeira vez que Flora entrava ali para se hospedar.  Tudo aquilo era muito estranho. Aquela cidade sempre teve um ar de casa e agora ela era obrigada a ficar em um hotel. Passando na frente da banca de jornais viu um cartaz que ainda trazia em letras garrafais a manchete de alguns dias atrás:
    “Professora aposentada de 70 anos foi encontrada morta em casa após 5 dias”
    Era duro ter que se lembrar do motivo que a fez viajar às pressas para a cidade dos seus antepassados. Sua tia, a querida tia Gemma, tão carinhosa, com a qual falava frequentemente pelo telefone, havia falecido sozinha em casa sem que ninguém percebesse a sua falta durante dias. “Meu deus, como eu fui egoísta! Eu sabia que ela vivia completamente sozinha nessa casa. Eu sabia e preferia acreditar no que ela dizia sempre: “estou bem, minha querida. O importante é saber que você está realizando os seus objetivos e isso me deixa muito orgulhosa”. “Eu sou um monstro, um monstro”, repetia Flora para si mesma. Na segunda-feira recebeu a chamada: “Oi Flora, sou o Bruno, lembra de mim? Infelizmente estou ligando para lhe dar uma má notícia. A sua tia faleceu. Isso foi há alguns dias. Ficamos sabendo porque a procurei em casa e ninguém atendeu. Perguntei aos vizinhos e eles também ficaram preocupados, pois nem à padaria ela tinha ido nos últimos dias. Eu já tinha telefonado sem obter nenhuma resposta. Ficamos todos chocados com a notícia. É muito triste para todos nós. Sua tia era querida por tanta gente. Sabe quantos alunos ela teve na cidade? Todos se lembram dela com afeto. Mas no dia a dia as pessoas não têm tempo para se ocupar daquilo que não faz parte da própria rotina. Eu prezava muito a nossa amizade.  Ela era considerada parte na nossa família. Sempre foi assim entre as nossas famílias. Pelo menos uma vez por semana eu ia fazer uma visita. Estava bem, tinha uma boa saúde, apesar da idade. Nenhum problema sério. Nunca se lamentava. Parece que foi do coração. Um ataque fulminante enquanto dormia. Já tomei todas as providências. O enterro vai demorar alguns dias porque serão feitas algumas verificações que são obrigatórias nesses casos.  Você era a única parente que ela tinha. Eu sinto muito, muito mesmo. Você pode vir? Também existem algumas questões práticas que precisam ser resolvidas. A casa, todos os bens da família. Estou à disposição para ajudar em tudo o que for possível, mas acho melhor você estar presente. Estamos esperando a sua chegada. Nem pense em ficar no hotel, fique na nossa casa. Avise quando chega o seu voo. Você é como se fosse da família, não se esqueça disso. Até breve.”
    “Agora estou aqui e a realidade dos fatos me veio dar as boas-vindas, nítida e sólida como um tijolo que cai do décimo andar direto na cabeça. Não quero chorar mais. Não quero incomodar ninguém. Não quero ir ao enterro. Não quero ir ao cemitério mais uma vez. Agora a casa onde eu guardava a toda a minha infância é um lugar de morte, de solidão, de abandono. Talvez já fosse assim antes, mas eu não queria enxergar as coisas desse modo. É engraçado como a sensação de doçura pode dar lugar à amargura tão facilmente. Basta um telefonema e o mundo começa a girar ao contrário.”
    “Oi seu Bruno, cheguei. Não se incomode, estou bem. Consegui transferir todos os meus trabalhos para alguns colegas e poderei ficar aqui o tempo que for necessário. Eu gostaria de entrar na casa amanhã, se for possível. Podemos nos encontrar lá às nove? Não sei como agradecer, não tenho palavras. Até amanhã.”
    Mais de sete anos se passaram desde a última vez que Flora esteve ali. O jardim, o coreto, a igreja, a esquina onde ficava o pipoqueiro, que cheiro bom que tinha. O portãozinho de ferro batido. A casa parecia um mosaico que contava como o gosto dos seus habitantes foi mudando com o passar do tempo. Ladrilhos de várias épocas, portas antigas e janelas modernas com grades, móveis maciços reformados, estofados desemparceirados. Muitos quadros, fotografias, tantas fotografias. Uma televisão velha. “Por onde devo começar? Tiraram o colchão do quarto onde ela foi encontrada.  A penteadeira parece que foi usada ontem. A escova ainda tem seus fios de cabelo. O seu vidro de perfume estava quase no fim. “O seu perfume.” O afeto não permite que se sinta o cheiro de um corpo querido que se decompõe, mesmo quando ele é tão evidente. Abriu a janela.

    “Flora, tem certeza de que quer ficar aqui sozinha?”

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