Admissão
É difícil
admitir certos fatos,
Mas se não
fizer isso, não vou conseguir me mover,
Vou cavar
minha cova patinando sempre no mesmo lugar;
Vamos lá:
É difícil
admitir que cresci sem refletir muito sobre o que sempre pareceu ser a ordem natural
das coisas,
Uma ordem
que não nasce da natureza das coisas,
Mas da
vontade do homem.
Aprendi que
as coisas têm de ser organizadas, porque o caos é o inferno,
Aprendi que
qualquer organização é melhor do que nenhuma.
Qualquer
uma.
Aprendi a
aceitar a ideia de que as pessoas são naturalmente más,
Que só com
mecanismos de repressão é possível conviver em sociedade.
Aprendi que
os mais frágeis, os rebentos, os miúdos,
Aqueles que
deveriam ser protegidos como plantas delicadas dos predadores adultos,
Também
aprendem muito cedo o gosto pela perversão.
Aprendi
desde o início que o escárnio dá um prazer imenso,
Que diminuir
o outro traz um bem-estar tão pleno e poderoso
Que é quase
uma das melhores e mais antigas sensações que estão lá,
Acomodadas
na prateleira das minhas armas de sobrevivência.
É difícil
admitir, mas é melhor não enrolar muito e soltar logo o verbo.
Não tenho a
menor ideia de quem eu sou ou do que eu estou fazendo aqui,
Mas quero
estar por cima. Quero ser a melhor.
Aprendi que
a vida é uma competição, uma luta perene,
Até o último
suspiro,
Na qual
ocasionalmente encontramos aliados passageiros,
Mas que no
fundo estamos sós. Sempre sós.
É preciso
competir desde cedo.
Todos os
pequenos aprendem isso.
Têm de se
destacar para merecer atenção.
Se não
chamam a atenção, não são nada.
Aprendi que
ser humilde é uma das maiores bobagens que alguém pode fazer na vida,
Que o
humilde é a coisa que fica lá, exposta para todo mundo chutar.
Aprendi que
os santos são enaltecidos para nos mostrar como não somos
E como nunca
deveremos ser.
Aprendi que
tenho de ser funcional,
Não para
exprimir aquilo que tenho dentro e que quer sair, crescer, interagir,
construir, criar
Devo apenas
fazer o máximo para moldar-me e transformar-me numa peça,
Naquela que
falta em alguma engrenagem fumacenta,
De uma
máquina qualquer que esgote tudo que está ao redor na manutenção da própria
existência.
Aprendi que
a justiça serve ao poder, que o poder é do mais forte, que o mais forte venceu.
Aprendi que
existem remédios para quem sofre de sensibilidade,
Que se dopar
às vezes é ilegal, mas nem tanto.
Que todo
mundo acaba se dopando, mais cedo ou mais tarde.
Porque o
mundo é uma selva,
Todo mundo
tem que aprender a pisar nos cadáveres dos próprios sonhos,
E seguir
adiante, de cabeça erguida,
Usando a
melhor arrogância que conseguir tirar do bolso ou comprar na esquina.
Aprendi que
aqueles que desistem e perdem a vontade de viver são tristes exceções,
Embora a
depressão seja algo extremamente comum e exatamente a mesma coisa.
Aprendi que
a vida em si pode perder o sentido,
E que quando
isso acontece, é melhor ter meios para comprar um.
Aprendi que
demonstrar um pouco de simpatia pelos mais fracos às vezes é vantajoso.
Que fingir
interesse pelos outros pode abrir portas, para mim.
Tudo isso
desde que haja um limite bem definido,
Um
verdadeiro abismo,
Entre o que
eu digo que é bom para os outros
E o que
considero satisfatório para tudo o que se refira à minha pessoa.
Na verdade,
eu sei que não sou o outro.
Eu quero
deixar bem claro que pertenço a uma categoria bem melhor que a do outro.
Esse outro é
diferente de tudo o que eu identifico como pertencente ao meu mundo,
Esse outro
não vale quase nada.
Esse outro
só presta para servir,
De
preferência, sempre dócil e satisfeito,
Burrinho,
mas suficientemente bem-educado.
Aprendi que
é melhor assim. Que é natural que seja assim.
Aprendi tudo
isso na escola, nas aulas de História, nas de Educação Moral e Cívica,
No recreio,
No
isolamento humilhante das crianças que fediam a urina,
Que tinham
cabelo crespo e não alisavam, que não usavam shampoo.
Nas frases
ditas com rispidez àquelas que não mereciam ser bem tratadas,
Aos filhos
de zés-ninguéns.
E até hoje
sou assim e
Não sei o
que fazer comigo.
Infelizmente.
Sou uma
mulher de alma bem brasileira,
Uma entre
tantas herdeiras de um país cuja história é uma sucessão de experiências
infames em matéria de sociedade.
Sou mais uma
que tem pavor da brutalidade que acontece em cada esquina,
Mas é
totalmente indiferente às suas raízes profundas.
Sinto que os
horrores da senzala estão impressos na minha alma,
O problema é
que eu simplesmente não consigo imaginar meu país sem ela.
É difícil
admitir, mas é verdade.