quinta-feira, 7 de maio de 2020

A roda


O trabalho é um órgão que pulsa
No corpo-humanidade,
É o pulso descompassado
Da velha modernidade

É o pão amassado com o suor,
Pela mão pequena da criança, pela mão enrugada do idoso,
Sem infância, sem descanso
É a ciranda dos Direitos do Homem,
Direitos de fumaça,
Miragens que se dispersam no ar pesado da realidade

O trabalho é a fonte fresca de água doce que deságua no mar salgado,
Vidas que se perdem buscando o sustento,
Vidas que se secam no deserto das fantasias alheias

O trabalho é o combustível que alimenta o motor-sociedade
É liberdade vestida de prisão e travestida de fantasia de liberdade

O trabalho é uma posição na pirâmide-sociedade:
Homens-alicerce, homens-base, homens-médios, homens-ponta
E assim a humanidade é pintada como uma multidão organizada que progride,
Desde que a parte de baixo não se mova,
E não dance ao som dos próprios anseios

É difícil sustentar o peso de tantas vidas humanas,
Mas o medo faz parecer legítimo aquilo que não é,
E a razão engole seco e se convence de que não existe outro meio,
E se cala, se cala, se cala

Trabalho também pode ser realização, projeto, sonho,
Pode ser a construção de si mesmo,
Não apenas o sustento do tão incógnito mercado,
Que deixa sempre um gosto amargo na boca daqueles que
Trabalham, trabalham, trabalham.

A roda do tempo gira,
Mas a engenhosidade humana não se cansa de trabalhar
Para gerar novas formas de servidão

É estranho nascer livre neste lugar
E ao crescer ter a certeza de que deve algo
Àqueles que se declaram os legítimos proprietários de quase tudo o que existe,
É engraçado saber que todos nascem filhos da Terra,
E passam a vida a lutar para serem bons inquilinos

O trabalho é o salão onde caem as máscaras,
E ficam evidentes as contradições mais profundas da nossa adorada humanidade,
Seus vergonhosos abusos e sua genialidade dourada,
É o campo de testes dos ideais, é o palco das ambições, é o metro das capacidades
É onde deixamos bem claro, como homens, que cada indivíduo pode ter um preço,
Que a sua vida pode ser comprada aos pedaços,
Que com os pedaços que sobram é possível comprar algumas coisas,
Mas não é possível comprar um sentido para a própria história,

Pura vertigem,

Roda, roda, roda.




Mariangela Ragassi
07.05.2010